sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Texto Referencial para o Eixo 4

Eixo - Proteção e Promoção do Patrimônio Cultural e da memória local

     I.        Proteção e Promoção do Patrimônio Cultural Material e Imaterial
    II.        Sistema Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural
   III.        Sistema Municipal de Museus, Centros de Memória e Arquivos
  IV.        Educação Patrimonial

CONCEITO DE PATRIMÔNIO IMATERIAL

Entende-se por “património cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural. Esse património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e da sua história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela criatividade humana. Para os efeitos da presente Convenção, tomar-se-á em consideração apenas o património cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais existentes em matéria de direitos do homem, bem como com as exigências de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos e de desenvolvimento sustentável.
 
O “património cultural imaterial”, tal como definido no número anterior, manifesta-se nomeadamente nos seguintes domínios:

  1. Tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial;
  2. Artes do espectáculo;
  3. Práticas sociais, rituais e eventos festivos;
  4. Conhecimentos e práticas relacionados com a natureza e o universo;
  5. Aptidões ligadas ao artesanato tradicional.
Salvaguarda do património cultural imaterial à escala nacional

Papel dos Estados Partes

Compete a cada Estado Parte:

      I.        Adoptar as medidas necessárias para a salvaguarda do património cultural imaterial existente no seu território;
    II.        Identificar e definir, entre as medidas de salvaguarda os diferentes elementos do património cultural imaterial existentes no seu território, com a participação das comunidades, dos grupos e das organizações não governamentais pertinentes.

Inventários

Cada Estado Parte elabora, a fim de assegurar a identificação com vista à salvaguarda, de forma adaptada à sua situação, um ou mais inventários do património cultural imaterial existente no seu território.  Tais inventários são objecto de uma actualização regular.

Cada Estado Parte, ao apresentar periodicamente o seu relatório ao Comité, em conformidade com o artigo 29.º, fornece informações relevantes sobre tais inventários.

Outras medidas de salvaguarda

Com vista a assegurar a salvaguarda, o desenvolvimento e a valorização do património cultural imaterial existente no seu território, cada Estado Parte esforça-se por:

      I.        Adoptar uma política geral que vise valorizar a função do património cultural imaterial na sociedade e integrar a salvaguarda do referido património em programas de planeamento;
    II.        Designar ou criar um ou mais organismos competentes para a salvaguarda do património cultural imaterial existente no seu território;
   III.        Encorajar estudos científicos, técnicos e artísticos, bem como metodologias de pesquisa para uma salvaguarda eficaz do património cultural imaterial, em especial, do património cultural imaterial em perigo;
  IV.        Adoptar as medidas jurídicas, técnicas, administrativas e financeiras apropriadas com vista a:
a.    Favorecer a criação ou o reforço de instituições de formação em gestão do património cultural imaterial, bem como a transmissão desse património através de fóruns e de espaços destinados à sua manifestação e expressão;
b.    Garantir o acesso ao património cultural imaterial, respeitando as práticas consuetudinárias que regem o acesso a aspectos específicos do referido património;
c.    Criar instituições de documentação sobre o património cultural imaterial e facilitar o acesso às mesmas.

Educação, sensibilização e reforço das capacidades

Cada Estado Parte esforça-se, por todos os meios apropriados, por:

      I.        Assegurar o reconhecimento, o respeito e a valorização do património cultural imaterial na sociedade, em especial, mediante:
a.    Programas educativos, de sensibilização e informativos destinados ao público, nomeadamente aos jovens;
b.    Programas educativos e de formação específicos no seio das comunidades e dos grupos em causa;
c.    Actividades de consolidação das capacidades em matéria de salvaguarda do património cultural imaterial e, em especial, de gestão e de pesquisa científica; e
d.    Meios não formais de transmissão de conhecimentos;
    II.        Manter o público informado das ameaças a que está sujeito tal património, bem como das actividades levadas a cabo em aplicação da presente Convenção;
   III.        Promover a educação sobre a protecção dos espaços naturais e dos lugares importantes para a memória colectiva cuja existência seja necessária à expressão do património cultural imaterial.

Participação das comunidades, grupos e indivíduos

No âmbito das suas actividades de salvaguarda do património cultural imaterial, cada Estado Parte procura assegurar a mais ampla participação possível das comunidades, dos grupos e, se for o caso, dos indivíduos que criam, mantêm e transmitem tal património e de envolvê-los activamente na respectiva gestão.

Definições do património cultural e natural

Para fins da presente Convenção serão considerados como património cultural:

Os monumentos. – Obras arquitectónicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de carácter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

Os conjuntos. – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitectura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
Os locais de interesse. – Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Para fins da presente Convenção serão considerados como património natural:

  1. Os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações com valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico;
  2. As formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente delimitadas que constituem habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, com valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação;
  3. Os locais de interesse naturais ou zonas naturais estritamente delimitadas, com valor universal excepcional do ponto de vista a ciência, conservação ou beleza natural.
Competirá a cada Estado parte na presente Convenção identificar e delimitar os diferentes bens situados no seu território referidos nos artigos 1 e 2 acima.

Protecção nacional do património cultural e natural

Cada um dos Estados parte na presente Convenção deverá reconhecer que a obrigação de assegurar a identificação, protecção, conservação, valorização e transmissão às gerações futuras do património cultural e natural situado no seu território constitui obrigação primordial. Para tal, deverá esforçar-se, quer por esforço próprio, utilizando no máximo os seus recursos disponíveis, quer, se necessário, mediante a assistência e a cooperação que possa beneficiar, nomeadamente no plano financeiro, artístico, científico e técnico.

Com o fim de assegurar uma protecção e conservação tão eficazes e uma valorização tão activa quanto possível do património cultural e natural situado no seu território e nas condições apropriadas a cada país, os Estados parte na presente Convenção esforçar-se-ão na medida do possível por:

  1. Adoptar uma política geral que vise determinar uma função ao património cultural e natural na vida colectiva e integrar a protecção do referido património nos programas de planificação geral; Instituir no seu território, caso não existam, um ou mais serviços de protecção, conservação e valorização do património cultural e natural, com pessoal apropriado, e dispondo dos meios que lhe permitam cumprir as tarefas que lhe sejam atribuídas;
  2. Desenvolver os estudos e as pesquisas científicas e técnica e aperfeiçoar os métodos de intervenção que permitem a um Estado enfrentar os perigos que ameaçam o seu património cultural e natural;              
  3. Tomar as medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e financeiras adequadas para a identificação, protecção, conservação, valorização e restauro do referido património; e
  4. Favorecer a criação ou o desenvolvimento de centros nacionais ou regionais de formação nos domínios da protecção, conservação e valorização do património cultural e natural e encorajar a pesquisa científica neste domínio.
Programas educativos

Os Estados parte na presente Convenção esforçar-se-ão, por todos os meios apropriados, nomeadamente mediante programas de educação e de informação, por reforçar o respeito e o apego dos seus povos ao património cultural e natural.

Comprometem-se a informar largamente o público das ameaças a que está sujeito tal património e das actividades levadas a cabo em aplicação da presente Convenção.

PATRIMÔNIO CULTURAL, MEIO AMBIENTE E TURISMO

No Brasil, a proximidade entre patrimônio cultural e natural é anterior à eclosão dos movimentos ambientalistas. O Decreto-lei 25, de 1937, que foi acolhido pela CF/88 e continua em vigor, prevê a proteção não só de bens do patrimônio histórico e artístico, como também de monumentos naturais e sítios de valor paisagístico, arqueológico e etnológico. É verdade que a trajetória da política de patrimônio priorizou os bens do período colonial, mas hoje essa perspectiva foi ampliada. A política cultural não está alheia à crise ambiental, que se torna mais grave a cada dia. Mesmo porque essa crise decorre de um componente cultural: o modo de vida consumista, que explora exaustivamente os recursos naturais.

Para muitos povos o vínculo entre natureza e cultura é indissolúvel, e aqueles que o perderam necessitam reatá-lo, sob pena de comprometer todo o ecossistema do planeta. No Brasil aprendemos pouco com as culturas indígenas; ao contrário, o país ainda está preso ao modelo colonial, extrativista, perdulário e sem compromisso com a preservação dos recursos naturais.

Agir com rigor na proteção do patrimônio natural e cultural pressupõe pensar novos modos de vida. Assim como o movimento ambientalista criou o conceito de desenvolvimento sustentável, para conciliar crescimento econômico e preservação da natureza, pode-se falar em “sustentabilidade cultural”, que significa erradicar a miséria, a pobreza e o analfabetismo, chegar aos níveis superiores de educação e usufruir dos benefícios da ciência e da tecnologia. Pressupõe respeitar e proteger a diversidade cultural, ter acesso às coisas belas e, no limite, conquistar a paz. Paz não como ausência de conflitos, mas como a possibilidade de solucioná-los por meios não-violentos.

Tendo como referência os conceitos de sustentabilidade ambiental e cultural é possível dialogar positivamente com as políticas de turismo. Somente assim podem ser suprimidas desconfianças mútuas, que resultam de ações equivocadas, como a remoção de moradores pobres de centros históricos reformados e a espetacularização de tradições populares, com objetivos exclusivamente comerciais. É sabido que os turistas têm predileção pelo que é original e singular, e que por isso os bens culturais e naturais exercem sobre eles forte atração. Essa circunstância pode ser aproveitada para potencializar as expressões culturais locais e conservar as belezas naturais, desde que o turismo seja também ele sustentável.

MEMÓRIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Há uma dialética da tradição, isto é, uma tradição só se firma e se mantém como tal na medida em que é capaz de renovar-se, quando ocorrem mudanças históricas que ameaçam sua sobrevivência ou exigem sua transformação. Se não se transforma, a “tradição” está fadada ao desaparecimento. Há uma relação dialética também entre identidade e criatividade. Se a identidade é um sistema de significados que se fundamenta na memória, a criatividade é o processo de produção de novos significados, que sinalizam para o futuro.

O poder público enfrenta um dilema quando é chamado a proteger a diversidade cultural. Historicamente, as políticas de patrimônio cultural vinculam-se às estratégias de legitimação do poder, ou seja, à necessidade que tem o Estado de se apresentar como o representante do interesse geral da sociedade, de todos os seus membros, independentemente de classe social, gênero, etnia, etc. As políticas educacionais e culturais muitas vezes são instrumentalizadas com esse objetivo. Para cumprir a função legitimadora, as políticas de patrimônio costumam construir uma identidade coletiva dos habitantes de determinado território (nacional, subnacional, local), a fim de unir os indivíduos em torno de valores que, supostamente, são comuns a todos. Para que essa identidade exerça eficazmente o papel legitimador ela deve ser singular (referir-se somente a um território), imutável (ou seja, anti-histórica) e unívoca (portadora de um mesmo significado para todos os membros da sociedade).

A pergunta que se coloca é a seguinte: como pode o poder público proteger e promover a diversidade cultural existente no território sob sua jurisdição, se ele necessita, para legitimar-se, de construir uma identidade única e comum no âmbito desse mesmo território? Uma alternativa que se apresenta é considerar como coletiva a soma das diversas identidades grupais, mas, para isso, é preciso abandonar o objetivo de construir uma identidade oficial e ser capaz de operar em um campo no qual podem ocorrer tensões e conflitos entre os diversos movimentos de identidade. Além disso, o poder público tem de estar aparelhado para processar as múltiplas demandas dos atores sociais que lutam pelo reconhecimento de suas identidades. Enfim, trata-se de reconhecer que existe unidade na diversidade, e diversidade na unidade.

Uma outra questão, também complexa, refere-se à possibilidade de haver distintas interpretações sobre os significados do patrimônio cultural. A distinção entre patrimônio material e imaterial ajuda a compreender esse fenômeno. É fato que o patrimônio material - particularmente o constituído de “cal e pedra” - tende a ser duradouro, variando pouco através do tempo. O patrimônio imaterial, por sua vez, constituído pelos saberes, celebrações e formas de expressão, tende a modificar-se mais rapidamente e a adquirir novos formatos. Contudo, o que importa mesmo são os valores e significados atribuídos pelas coletividades a esse patrimônio, seja ele material ou imaterial. Desse ponto de vista é possível dizer que todo patrimônio cultural é, em última instância, imaterial, porque afinal significados e valores são coisas imateriais. No entanto, os significados podem variar quando interpretados por um ou outro grupo humano. Todos concordam que Jerusalém tem uma grande significação para a história da humanidade. Mas os valores ali contidos variam conforme o olhar das diferentes religiões, podendo ser até mesmo antagônicos se interpretados por católicos, muçulmanos ou judeus.

Todas essas complexas questões levam a concluir que os espaços de memória, como os museus, arquivos e bibliotecas, têm uma grande importância social e política. A memória coletiva necessita de suportes para manter-se disponível e em permanente ressignificação. Cumprindo a função de guardar, conservar e disponibilizar acervos, essas instituições contribuem enormemente para a extensão dos direitos culturais.[1]


[1] *Texto retirado da Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, da Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural e do Documento Base da II Conferência Nacional de Cultura.

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