sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Texto Referencial para o Eixo 5

Eixo – Universalizar o acesso à fruição e à Produção Cultural e os Direitos Culturais

     I.        Cultura e Comunicação
    II.        Circulação da Produção Cultural
   III.        Descentralização Cultural
  IV.        Acesso, Acessibilidade e Direitos Culturais
   V.        Desenvolvimento da cidadania e inclusão cultural

CULTURA, COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA

As atividades relacionadas à informação estão adquirindo importância crescente no mundo atual. A produção, difusão e acesso às informações são requisitos básicos para o exercício das liberdades civis, políticas, econômicas, sociais e culturais. O monopólio dos meios de comunicação (mídias) representa uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, principalmente no Brasil, onde a televisão e o rádio são os equipamentos de produção e distribuição de bens simbólicos mais disseminados, e por isso cumprem função relevante na vida cultural.

As políticas culturais só recentemente começam a dar importância aos meios de comunicação de massas e ao seu papel de produtor e difusor da cultura. Tão necessário quanto reatar o vínculo entre cultura e educação é integrar as políticas culturais e de comunicação. Nesse sentido, os fóruns de cultura e de comunicação devem unir-se na luta pela regulamentação dos artigos da CF/88 relativos ao tema. Entre eles o que obriga as emissoras de rádio e televisão a adaptar sua programação ao princípio da regionalização da produção cultural, artística e jornalística, bem como o que estabelece a preferência que deve ser dada às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, à promoção da cultura nacional e regional e à produção independente (art. 221). Da mesma forma, cabe regulamentar o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de rádio e TV (art. 223).

As emissoras comerciais se organizam com base nas demandas do mercado, que são legítimas. Contudo, essas demandas não podem ser as únicas a dar o tom da comunicação social no país. Aqui entra o papel das emissoras públicas, que devem dar visibilidade às idéias e expressões culturais minoritárias, que não têm aptidão para tornarem-se “campeãs de audiência” e nem encontram lugar nas emissoras comerciais. Exercendo funções complementares – não opostas – as emissoras públicas e comerciais, cada uma no seu campo, fortalecem a saúde da democracia.

As TVs e rádios comerciais vendem sua audiência (o público) para os anunciantes. Sua estratégia dirige-se à captação de público e à manutenção da atenção desse público. Elas vivem disso, que é o que tem valor em seu modelo de negócio. Para tanto, sua programação visa, basicamente, o entretenimento. As TVs e rádios públicas devem caminhar em outra direção. Não podem ser caixas de ressonância das demandas do mercado e tampouco sujeitar-se a promover os governantes. Precisam ser independentes dos governos e do mercado. Sua programação deve basear-se na experimentação de linguagens, na discussão de ideias e na busca da autonomia e da emancipação de ouvintes e telespectadores. Em suma, o negócio da televisão e das rádios públicas não é o entretenimento, é cultura, educação, informação e liberdade.

Para avançar nessa direção é necessária uma maior articulação interna do setor. Hoje, no país, há inúmeros canais públicos, mas eles não dialogam nem cooperam entre si e por vezes se consideram concorrentes. Conjugadas, essas emissoras podem estabelecer redes capazes de produzir e transmitir conteúdos ricos e diversos, funcionando em bases articuladas democraticamente, que respeitem suas especificidades, mas cuja resultante seja a constituição de malhas de troca e conexão de programações.

As TVs e rádios públicas são estratégicas para que a população tenha acesso aos bens culturais e ao patrimônio simbólico do país em toda sua diversidade. Para tanto elas precisam aprofundar a relação com a comunidade, que se traduz no maior controle social sobre sua gestão, no estabelecimento de canais permanentes dedicados à expressão das demandas dos diversos grupos sociais, na adoção de um modelo aberto à participação de produtores independentes e na criação de um sistema de financiamento que articule o compromisso de Municípios, Estados e União. Organicamente ligadas à sociedade, podem ampliar seu leque de prestação de serviços, conjugando programações para diferentes meios (como a telefonia celular e a internet) e espaços educativo-culturais, como escolas, universidades, centros culturais, sindicatos e associações comunitárias.

Ação cultural descentralizada*


A implantação de uma Política de Descentralização Cultural, conjugada com as outras Políticas Públicas no município, é um instrumento eficaz de democratização da cultura ao permitir que todos os cidadãos tenham acesso às atividades de formação, aos programas artísticos e aos projetos culturais. Ajuda também a promover uma maior integração com a população e a dar lugar às manifestações da comunidade local.

A descentralização das ações culturais da secretaria, fundação ou outro órgão de cultura é um mecanismo que visa dar transparência e visibilidade às ações de governo nesse campo, divulgando as atividades e os cursos de formação. Ao mesmo tempo, coloca à disposição da população os equipamentos públicos de cultura.

Um dos objetivos dessa política é abrir espaços para que a sociedade local e o cidadão comum participem de fóruns e da formulação de políticas e projetos culturais para a região ou bairro bem como para a gestão dos equipamentos.

Um outro objetivo é desdobrar e multiplicar a ação de secretarias e fundações ultrapassando os "templos e nichos" culturais centrais para aprofundar as relações com os diversos atores locais, como sindicatos, movimentos sociais, associações, entidades.

Com essa política, podem ser revitalizadas diversas atividades locais; podem ser valorizadas as expressões culturais das periferias das cidades; também pode ser promovido o acesso de toda a população à informação e à criação cultural, além de estimular a produção local. Outro aspecto importante é a possibilidade de se "desprivatizar" certos espaços culturais, usados, em geral, para fins clientelísticos.

EXPERIÊNCIAS

Na cidade de São Paulo-SP (9.842 mil hab.), na gestão 1989-1992, a Secretaria Municipal de Cultura implantou uma Política de Cidadania Cultural para colocar a cultura (fruição, difusão, criação do bem cultural e a participação nas decisões sobre a cultura na cidade) como direito dos cidadãos.

É nesse contexto que aparece a Ação Cultural Regionalizada. O programa, iniciado em 1991, criou treze Coordenações Regionais para atuar junto à população da cidade.

A idéia central do programa era trabalhar com os diversos movimentos e entidades (sociais, sindicais, populares, culturais), atuando em conjunto com outras Secretarias Municipais, estimulando o debate público sobre os problemas das regiões, promovendo eventos (aulas públicas, mostras culturais, fóruns, etc.), apresentando a ação cultural e a idéia de cultura como direito dos cidadãos. Essas atividades eram realizadas sempre pensando na ocupação cultural de espaços sem determinação prévia, mas havia também um trabalho conjunto com as Casas de Cultura promovendo encontros e exposições itinerantes pela cidade e incentivando a formação de fóruns regionais de cultura. (cf. Prestação de Contas 1989-1992).

Além da cultura, também eram tratados outros temas: AIDS, meninos de rua, prostituição, alimentação, ecologia, mananciais. Cada grupo apresentava suas demandas, que eram então discutidas entre agentes culturais, administradores regionais e população. A interação com a Sociedade Civil foi intensificada neste período. Apesar de o programa não ter sido implantado como uma Política de Descentralização Cultural porque a Câmara Municipal não aprovou o Projeto de Reforma Administrativa proposto pela Prefeitura, houve uma descentralização de cunho político no sentido amplo.

A experiência de descentralização da vida cultural de São José dos Campos-SP (468 mil hab.) é uma proposta do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural "Cassiano Ricardo", aprovada em 1993 para atender o maior número de usuários em todos os setores culturais e localidades do município. Para isso, em 1994, foi criado o Departamento de Ação Cultural Descentralizada, com a função de implantar uma política de descentralização baseada em dois pressupostos: o primeiro era a definição dos locais a partir de critérios sócio-culturais, organizações coletivas, e a geografia do município; o segundo era que houvesse pelo menos um agente cultural em cada local onde funcionaria essa ação.

Esta experiência tem dado ênfase também à constituição das Casas de Cultura como marcos de referência para a população: alguns espaços foram edificados e outros foram adaptados para o fazer cultural da população local.

O importante nessa experiência é que tem se pautado por quatro diretrizes que apontam tanto para a democratização da cultura como para a democracia cultural, ampliando assim conceitos já estabelecidos:

      I.        a informação como direito do cidadão, potencializando a atuação dos agentes culturais também como cidadãos;
    II.        a formação cultural como item forte que propicia espaços mentais e físicos para a criação artística, utilizando-se as oficinas culturais;
   III.        a difusão visa garantir a distribuição e a circulação dos bens culturais produzidos na cidade e região;
  IV.        a organização como um aspecto relevante da ação cultural que coloca a possibilidade de auto-gestão dos grupos, movimentos e das comunidades, bem como de seus respectivos projetos culturais.

Alguns resultados dessa experiência ajudam a visualizar o que tem sido feito:

      I.        Formação: Cursos e palestras para formação de agentes culturais; "Arte nos Bairros" (60 oficinas)
    II.        Difusão: apresentação de concertos, filmes, vídeos, peças teatrais (nos bairros)
   III.        Informação: registro em vídeo e relatório das ações culturais; apoio a Fanzines dos bairros; incentivo a bibliotecas comunitárias; divulgação das atividades culturais da cidade.
  IV.        Organização: reuniões com as comunidades; apoio ao movimento Hip-hop e outros grupos; fortalecimento das comissões setoriais da Fundação Cultural "Cassiano Ricardo"; parcerias em atividades com Saúde Mental; apoio ao "orçamento participativo".
    V.        Público atendido: de 1993 a 1995, 76.897 pessoas
  VI.        Bairros atendidos: 8
 VII.        Casas de Cultura implantadas: 3

A experiência da cidade de Belo Horizonte-MG (2.060 mil hab.) vem de uma trajetória de luta para implantar nos bairros uma ação cultural que respeitasse o que já era feito nas diversas comunidades desde a década de 70. A partir de 89, as reformas administrativas auxiliaram muito o processo de descentralização, principalmente nos setores de saúde, educação, controle urbano e obras. Foi nessa época que começou a experiência de descentralização das ações culturais, através da Secretaria Municipal de Cultura. Apesar dos vários problemas que têm surgido, muitos avanços puderam ser constatados: organização dos movimentos culturais, investimento nos grupos artísticos e a realização de projetos permanentes como o "Praça Sete Seis e Meia", o "Música de Domingo" e o "Música nas Igrejas". As discussões em torno da descentralização cultural foram consolidadas no "Plano de Ação Cultural Regionalizada" que, apesar de dar alguns nortes para essa ação, não garantia, em si, a continuidade do trabalho proposto.

A Ação Cultural Regionalizada de Belo Horizonte trouxe resultados de importância vital para a renovação e a inovação cultural no município:
Os "Circuitos Culturais Regionalizados" articulam os movimentos culturais, difundem a produção cultural local e criam espaços de convivência para a população.

Para a formação e a capacitação cultural, foram realizadas seis oficinas para grupos teatrais amadores, culminando no projeto "Usina de Teatro", com grande efeito multiplicador: os alunos retornaram o seu conhecimento teatral para as suas comunidades.

Em relação às Políticas Públicas e a Cultura, foram realizadas três experiências de destaque: "Projeto Acampados", voltado para a população sem-casa; "Projeto de Intervenção Cultural nos Alojamentos", que trabalhou com famílias transferidas de áreas de risco para alojamentos; e um projeto em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, ligado à "Saúde Mental".

A ação cultural também trabalhou com projetos relacionados à Memória e Patrimônio. Implantou, em parceria com as Administrações Regionais, os Centros Culturais (centrais, regionais, locais e de referência ) buscando a participação, democratização e difusão artístico-cultural.

IMPLANTAÇÃO

Para a implantação de uma ação cultural descentralizada é necessária uma atividade anterior como parte do planejamento: fazer um mapeamento das regiões ou bairros e vilas, levantando dados sobre equipamentos públicos e também sobre manifestações culturais já existentes. Esta coleta de dados serve inclusive para definir prioridades da ação nos bairros.

Pode-se trabalhar com a idéia de que certos equipamentos com outra função podem ser aproveitados para atividades culturais. Por exemplo: em trabalho conjunto com a Secretaria de Educação, pode-se usar uma escola ou biblioteca pública para cursos ou oficinas (vídeo, cinema, literatura, teatro, dança, capoeira, artesanato, etc). Pode-se utilizar também os equipamentos históricos desativados, adaptando-os para as atividades: casas históricas, por exemplo, podem exercer a função de Centros Culturais. Quanto ao espaço físico, não havendo nenhum local apropriado, é importante a construção de Casas de Cultura para cada região.

Um outro aspecto importante é o trabalho integrado com outras secretarias e administrações regionais. Envolver toda a administração dá um peso maior e também mais condições para essa atuação. A administração deve definir em conjunto uma estratégia que envolva as políticas sociais do governo. O apoio das administrações regionais pode ser fundamental para o funcionamento de uma ação deste tipo.
Implantar uma política de descentralização também requer pessoas habilitadas e capacitadas para um trabalho com as comunidades locais. Este agente cultural precisa saber ouvir as aspirações e perceber as carências, discutindo-as com o público. Sem este agente, corre-se o risco de se elaborar um projeto descolado das "fidelidades locais", com um viés muito academicista. Essas comunidades "sem voz" na sociedade têm uma maneira própria de comunicar suas necessidades culturais e sociais. É a partir destas "escutas" e das audiências públicas, com fóruns e debates abertos a todos, que poderão ser formulados projetos culturais específicos para cada região. Também é possível compatibilizar essas ações com um plano de governo local.

A ação cultural descentralizada tem sido implementada em grandes e médios municípios. Em municípios pequenos ela também pode ser aplicada, considerando-se que há distritos e vilas distantes das cidades. Muitas vezes o cidadão da roça procura no centro uma atividade que poderia encontrar numa escola de bairro.

CIDADE COMO FENÔMENO CULTURAL

Em 2004, cidades e governos locais de todo o mundo, comprometidos com os direitos humanos, a diversidade cultural, a democracia participativa e a criação de condições para a paz, aprovaram a Agenda 21 da Cultura, documento orientador das políticas culturais locais. Entre os princípios desse documento destacam-se: (i) a diversidade cultural é o principal patrimônio da humanidade; não obstante, ninguém pode invocá-la para atentar contra os direitos humanos; (ii) há uma profunda relação entre patrimônio cultural e patrimônio ambiental, que constituem bens comuns da humanidade; (iii) a liberdade cultural dos indivíduos e das comunidades é uma condição essencial da democracia; (iv) as cidades e espaços locais são ambientes privilegiados de realização da cultura, onde o encontro de tudo o que é diferente e distinto torna possível o desenvolvimento humano integral; (v) o patrimônio cultural, tangível e intangível, é testemunho da criatividade humana e substrato da identidade dos povos; (vi) a afirmação das culturas e o conjunto de políticas postas em prática para seu reconhecimento e viabilidade, constituem fator essencial ao desenvolvimento das cidades e territórios em todos os planos: econômico, político, social e humano; (vii) as políticas culturais devem encontrar um ponto de equilíbrio entre interesses públicos e privados; uma excessiva institucionalização ou a excessiva prevalência do mercado comportam riscos e levantam obstáculos ao desenvolvimento dos sistemas culturais; (viii) o acesso sem distinções aos meios de expressão, tecnológicos e de comunicação e a constituição de redes horizontais fortalece e alimenta a dinâmica das culturas locais e enriquece o acervo coletivo; (ix) os espaços públicos são bens coletivos e nenhum indivíduo ou grupo pode ver-se privado de sua livre utilização, dentro do respeito às normas adotadas em cada cidade.

Sabe-se que a população brasileira, entre 1940 e 1980, passou de predominantemente rural para majoritariamente urbana, sob o impulso da migração de um vasto contingente de pobres. Nessas cidades, por muito tempo a população pobre permaneceu excluída das condições básicas de vida, sem acesso à infra-estrutura urbana e às oportunidades de trabalho, cultura e lazer. Em geral, os equipamentos culturais ficavam situados no centro urbano ou nas regiões mais ricas da cidade.

Com a redemocratização do país, muitas administrações municipais implantaram o Orçamento Participativo e essa população passou a ser consultada e a reivindicar a instalação de Centros Culturais. As expectativas em torno desses espaços são de três tipos: (i) ser um lugar de lazer, recreação e cultura localizado próximo ao local de residência; (ii) servir como antídoto à sedução que o crime organizado exerce sobre crianças e jovens, por meio da ocupação do tempo livre (extra-escolar); (iii) abrir oportunidades de inclusão social (emprego e renda) via atividades artesanais e artísticas. Constata-se, assim, que a cultura está sendo chamada a cumprir papel complementar às políticas educacionais, de segurança e trabalho, o que impõe grandes responsabilidades. Os equipamentos culturais também são utilizados para reabilitar áreas urbanas atingidas pela degradação e pelo esvaziamento. Nesse ponto, o desafio é revitalizar sem discriminar, já que muitos projetos desse tipo implicam na expulsão da população pobre para áreas distantes e mais desvalorizadas.

A instalação de espaços culturais constitui o ponto culminante dos programas de descentralização da cultura, que têm um caráter, ao mesmo tempo, geopolítico e socioeconômico, porque resultam na implantação de equipamentos em regiões da cidade ainda marcadas pela exclusão. Ao avaliar os resultados dos programas de descentralização cultural, é possível constatar que a perspectiva dicotômica – centro/periferia – deve ser substituída por uma nova visão das cidades, que identifica no território urbano uma variedade de regiões, com seus próprios centros e periferias.

ACESSO, ACESSIBILIDADE E DIREITOS CULTURAIS

A Constituição brasileira, embora cite explicitamente os direitos culturais, não chega a detalhá-los. Contudo, analisando os vários documentos internacionais da ONU e da Unesco já reconhecidos pelo Brasil, e a própria CF/88, pode-se concluir que os direitos culturais são os seguintes: direito à identidade e à diversidade cultural; direito à participação na vida cultural (que inclui os direitos à livre criação, livre acesso, livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural); direito autoral e direito/dever de cooperação cultural internacional.

O direito à identidade e à diversidade cultural, que nasce durante o século XVIII no âmbito dos Estados nacionais, é elevado ao plano internacional após a Segunda Guerra Mundial, quando ocorrem verdadeiros saques ao patrimônio cultural dos países ocupados. Em 1954 a Unesco proclama a Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, documento em que os Estados se comprometem a respeitar os bens culturais situados nos territórios dos países adversários, assim como a proteger seu próprio patrimônio em caso de guerra. O movimento ecológico, que ganhou ímpeto a partir da década de 1970, também contribui para a elevação desse direito ao plano mundial. Em 1972 a Unesco aprova a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, onde se considera que a deterioração e o desaparecimento de um bem natural, ou cultural, constituem um empobrecimento do patrimônio de todos os povos do mundo. O vínculo entre patrimônio cultural e ambiental é reforçado na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001), que diz ser a diversidade cultural, para o gênero humano, tão necessária quanto a diversidade biológica para a natureza. Por isso deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. Situação específica é a dos países onde existem minorias étnicas, religiosas e lingüísticas. Nesse caso, o artigo 27 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos (1966) garante aos membros desses grupos o direito de ter sua própria vida cultural, professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. Em 1992 a ONU aprofunda esses princípios na Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Lingüísticas, na qual se formula a obrigação dos Estados de proteger a identidade cultural das minorias existentes em seus territórios. Também cabe destacar a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular (1989). Considerando que a cultura popular deve ser protegida por e para o grupo cuja identidade expressa, e reconhecendo que as tradições evoluem e se transformam, essa Recomendação insiste, basicamente, na necessidade dos Estados apoiarem a investigação e o registro dessas manifestações. Não obstante, temendo que a cultura popular venha a perder seu vigor sob a influência da indústria cultural, recomenda-se aos Estados que incentivem a salvaguarda dessas tradições não só dentro das coletividades das quais procedem, mas também fora delas. Finalmente, cabe citar a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Esse documento chama a atenção para a necessária integração da cultura nos planos e políticas nacionais e internacionais de desenvolvimento e reafirma o direito soberano dos Estados de implantar políticas de proteção e promoção da diversidade cultural em seus respectivos territórios.

O direito à livre participação na vida cultural foi proclamado no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948): toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que deles resultam. Analisando documentos posteriores, pode-se subdividir o direito à participação na vida cultural em quatro categorias: direito à livre criação, livre fruição, livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural. A Recomendação sobre o Status do Artista (1980), que trata da liberdade de criação, convoca expressamente os Estados a ajudar a criar e sustentar não apenas um clima de encorajamento à liberdade de expressão artística, mas também as condições materiais que facilitem o aparecimento de talentos criativos. No que diz respeito à difusão, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) assegura a todas as pessoas a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha. Excetuam-se os casos que envolvem a reputação das demais pessoas e as manifestações contrárias aos princípios fundamentais dos direitos humanos, tais como a propaganda a favor da guerra e a apologia ao ódio nacional, racial ou religioso. Por fim, a Declaração do México sobre as Políticas Culturais (1982) postula a ampla participação dos indivíduos e da sociedade no processo de tomada de decisões que concernem à vida cultural. Para tanto, recomenda-se multiplicar as ocasiões de diálogo entre a população e os organismos culturais, por meio da descentralização das políticas de cultura.

O direito autoral foi internacionalmente reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 27) e, mais tarde, na Convenção Universal sobre Direito de Autor (1952). Esse direito permeia a criação, a produção, a distribuição, o consumo e a fruição dos bens culturais, e está na base de todas as cadeias econômicas da cultura. Fundamenta-se na ideia de que a propriedade sobre a criação intelectual e artística é a mais legítima e a mais pessoal das propriedades, porque as obras, além da dimensão material, têm uma dimensão moral, são como emanações da personalidade dos autores. Entretanto, o direito autoral não é puramente individual, porque depois de certo tempo as obras caem em domínio público, ou seja, passam a pertencer a toda a sociedade. O interesse social termina por prevalecer sobre o individual. Hoje, na sociedade da informação e do conhecimento, o direito autoral vem sendo bastante questionado. Pergunta-se se é possível coexistirem o direito autoral e a rede mundial de computadores (Internet), que permite uma inédita reprodução de textos, sons e imagens. Os especialistas respondem que sim, é possível, mas que para isso o direito autoral terá de renovar-se e até mesmo utilizar-se das novas tecnologias para proteger os autores e suas obras. Nessa renovação o direito autoral terá de harmonizar-se com o direito à participação na vida cultural, para que a liberdade de acesso e a exclusividade de utilização das obras – princípios, respectivamente, da sociedade da informação e do direito autoral – possam coexistir e equilibrar os interesses públicos e particulares envolvidos.

O direito/dever de cooperação cultural internacional foi proclamado na Declaração de Princípios da Cooperação Cultural Internacional (1966): a cooperação cultural é um direito e um dever de todos os povos e de todas as nações, que devem compartilhar o seu saber e os seus conhecimentos, diz seu artigo quinto. Essa Declaração considera o intercâmbio cultural essencial à atividade criadora, à busca da verdade e ao cabal desenvolvimento da pessoa humana. Afirma que todas as culturas têm uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e que é através da influência que exercem umas sobre as outras que se constitui o patrimônio comum da humanidade.
O vínculo entre os direitos à identidade e à cooperação é profundo. Se, por um lado, é reconhecido o direito de cada povo defender seu próprio patrimônio, de outro, esses mesmos povos têm o dever de promover o intercâmbio entre si. Em suma, nenhum país, região, grupo étnico, religioso ou lingüístico poderá invocar suas tradições para justificar qualquer tipo de agressão, pois acima dos valores de cada um está o patrimônio comum da humanidade, cujo enriquecimento se dá na mesma proporção em que o intercâmbio cultural é incrementado.[1]




[1] Texto retirado do Documento Base da II Conferência Nacional de Cultura e do Site da Fundação Perseu Abramo.

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