sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Texto Referencial para o Eixo 6

Eixo - Formação e Intercâmbio Cultural

     I.        Formação Cultural nas dimensões cidadã, simbólica e econômica
    II.        Formação de Público
   III.        Promoção de Intercâmbio Cultural

A relação entre educação e cultura não pode ser pensada de forma dicotômica. Jean-Clau­de Forquin destaca que “toda educação de tipo escolar supõe sempre na verdade uma seleção no interior da cultura”. Uma possí­vel definição de currículo deveria então dar ênfase, segundo o autor, a aspectos como seleção e transposição didática, ou seja, o que levar para a escola das múltiplas experi­ências culturais vividas no cotidiano e como torná-las acessíveis às novas gerações.

Nesse contexto, a escola assume um im­portante papel, no sentido de possibilitar o acesso a variadas formas de expressão cul­tural, em especial no campo da arte. E os professores são mediadores dessa relação.

De que forma a leitura de um livro de litera­tura, a frequência a salas de cinema e teatro, a ida a museus e a espetáculos musicais e de dança constituem um repertório capaz de enriquecer o currículo escolar.

A expressão formação cultural vem sendo cada vez mais utilizada, para os mais diver­sos propósitos. Pretendemos, neste texto, desenvolver esse conceito, a partir de sua gênese, para depois relacioná-lo com o cam­po da Educação.

O termo cultura deriva-se do latim cultur e era originalmente relacionado aos cuidados dispensados ao campo, isto é, seu cultivo com plantas e animais. A partir do século XVI, seu sentido inicial sofre transformações e é com o Movimento Iluminista, em meados do século XVIII, que a utilização do sentido figu­rado do termo ganha força. A metáfora de se cultivar o espírito, assim como se cultiva a terra, recebe reconhecimento e o termo “cul­tura” passa a ser entendido como o estado do espírito cultivado, quase sempre associado à ideia de “civilização” (CUCHE, 1999).

Mais tarde, intelectuais nacionalistas ale­mães criticaram a influência da corte fran­cesa e passaram a utilizar o termo “cultura” para o que é autêntico, profundo, e “civi­lização” para o que seria supérfluo, mero refinamento estrangeiro. Essa polarização permanece por boa parte do século XIX: para os alemães, a noção de cultura abarca o conjunto de tradições artísticas e intelectu­ais que marcam determinado povo; para os franceses, a noção de cultura se funda à de civilização, denotando todo um patrimônio de arte e conhecimento que se compreende como universal. Essa polarização marca o debate sobre cultura presente no século XX, oscilando entre dois polos, um universalista (de herança francesa) e outro particularista (de origem germânica).

Atualmente, percebe-se uma tendência, na qual nos incluímos, de se aproximar esses dois polos, isto é, entender a cultura tanto do ponto de vista local quanto do ponto de vista universal. No caso da Educação, esse debate ganha contornos peculiares.

Em geral, a Educação, ao longo dos tempos, vinha adotando a concepção francesa, isto é, universalista. Os currículos e conteúdos considerados “educacionais” giravam em torno de saberes consagrados. Os críticos, muitos provenientes de outras áreas das ci­ências humanas, notadamente da sociolo­gia, apontavam equívocos e afirmavam que muito do que era considerado “universal” era apenas europeu, branco e masculino. Defendiam, tal como os intelectuais ger­mânicos do século XIX, a necessidade de se abarcar as manifestações culturais locais, distintivas de determinados grupos sociais, ainda que minoritários do ponto de vista da hegemonia política e econômica. Essa pos­tura pode ser reconhecida principalmente no campo das discussões sobre currículo, em particular nas questões relativas à mul­ticulturalidade e, certamente, tem validade.
Contudo, é importante ressaltar o perigo de se cair em um processo igualmente no­civo que é o da recusa a qualquer conteúdo que represente o pensamento consagrado. Conforme nos lembra Rouanet, há o perigo de se adotar uma postura anticolonialista, que termina por se constituir em xenofobia: “cultura autônoma é aquela que pode ser posta a serviço de um projeto de autonomia, e não vejo porque só a cultura gerada den­tro das fronteiras nacionais possa contribuir para esse objetivo” (1999, p. 127).

Exemplifiquemos: estudar Cervantes, conhe­cer sua obra-prima, viajar junto com Dom Quixote combatendo os moinhos de vento, tudo isto é absolutamente necessário e rico, do ponto de vista da própria constituição de humanidade. Não é porque um aluno more na periferia do Rio de Janeiro que seus limi­tes tenham que ficar restritos ao jornal do bairro. Mais uma vez recorremos a Rouanet:

O ideal democrático é a universalidade, o que significa criar condições para que todos tenham acesso à língua culta, e não a segregação, que excluiu grandes parcelas da população do direito de usar um código mais rico, que lhes permiti­ria estruturar cognitivamente sua pró­pria prática, com vistas a transformá-la (1999, p. 137).

Da mesma forma, ainda que sejam valoriza­das, em sala de aula, as produções musicais que o aluno vivencia cotidianamente, como o samba ou outros ritmos mais populares, não é razoável que não se possa apresentar a ele obras-primas consagradas, como afir­ma Snyders, respondendo às críticas perti­nentes de Bourdieu a respeito do elitismo da música erudita:

A música de Mozart é música de clas­se: ouvimos nela a vida das cortes se­nhoriais, respiramos nela a atmosfera arcaizante de galanteria e de lacaios empoados; o acesso a Mozart hoje, as condições que fazem com que ele seja ou não ouvido, são fenômenos de classe.

Entretanto, as obras primas de Mozart possuem em si mesmas elementos para ultrapassar as barreiras de classe, tanto as de seu autor como as de seu público; um ensino elaborado é necessário, sem dúvida, para que os alunos tomem cons­ciência desses elementos – e isto consti­tui também uma das justificativas desse ensino (1992, p. 43).

É importante afirmar que o potencial de transfor­mação da arte é intrínse­co à sua própria nature­za, não estando restrito a um discurso que se quer engajado. A arte não é re­volucionária apenas por ser escrita por ou para trabalhadores. Quanto a isso, adverte-nos Marcuse (1977, p. 14):

Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais ela reduz o poder de afastamento e os objetivos radicais e transcendentes de mudança. Neste sen­tido, pode haver mais potencial subver­sivo na poesia de Baudelaire e de Rim­baud que nas peças didáticas de Brecht.

É fundamental, portanto, ter em mente o potencial transformador da Arte e, por con­seguinte, sua centralidade em um projeto de formação de professores para uma so­ciedade que se quer transformada. Esse po­tencial pode estar igualmente localizado em obras de arte de origem popular ou erudita. Também é importante distinguir as produ­ções artísticas verdadeiramente populares daquelas produzidas pela indústria cultural, tendo em vista, prioritariamente, o lucro comercial, acima de qualquer preocupação com qualidade esté­tica.

Poder-se-ia afirmar que o professor está imerso na cultura: os apelos visuais, sonoros, corporais estão por toda par­te, especialmente veiculados pelos grandes meios de comunicação de massa. Por que, então, insistir na ideia de que a formação cultural dos professores ain­da é incipiente e precisa ser incrementada? Porque é preciso estarmos alertas quanto ao processo de coisificação da arte, isto é, sua incorporação pela indústria cultural. É nes­se processo de mercantilização que se retira o potencial transformador da arte. Segundo Pucci (1995, p. 26), “a arte introduz a dimen­são do novo, do subjetivo, do arriscado, do ambíguo, qualidades não tão bem vistas pe­los planejadores da Razão Instrumental”. Já a indústria cultural, transformada em sensí­vel instrumento de controle social, confere É importante afirmar que o potencial de transformação da arte é intrínseco à sua própria natureza, não estando restrito a um discurso que se quer engajado aos produtos culturais um ar de semelhan­ça, de homogenização, de coisificação.

Essa falsa variedade está ancorada em uma “suposta liberdade de escolher o que é sem­pre a mesma coisa” (ADORNO E HORKHEI­MER, 1985, p. 156). Nesse processo, deno­minado semicultura (ADORNO, 1996), o indivíduo não vivencia uma experiência es­tética profunda: é apenas uma fruição epi­dérmica, pouco vigorosa e, principalmente, passageira, uma vez que é preciso estar sem­pre disposto a consumir o novo produto a ser lançado. As ondas de que o meio fono­gráfico brasileiro lança são um triste exem­plo dessa pasteurização: a cada verão, novos modismos/artistas são lançados no merca­do. Há toda uma veiculação de produtos correlatos (DVDs, roupas, calçados, shows), exaustivamente divulgados, que atingem números realmente impressionantes de vendagem, frequentemente batendo os re­cordes dos anos anteriores. No entanto, da mesma forma que se apresentam de forma avassaladora, não resistem a mais de uma estação, curiosamente o período em que o mundo da moda lança seus novos produ­tos. Nesse sentido, a expressão “modismo”, quando aplicada aos produtos da indústria cultural, não é fortuita.

Diferentemente, as obras de arte, sejam de origem popular ou erudita, promovem no apreciador, seja ele ouvinte ou espectador, um crescimento na direção de sua própria humanização. A relevância da experiência estética está justamente nesse processo, pois é no contato com a Arte, seja assistindo a um filme e sentindo empatia pelos perso­nagens, seja participando de um concerto e se transportando para outro período histó­rico, seja apreciando uma pintura e viven­ciando o ideal de beleza e humanidade nela expresso, o homem anseia por absorver o mundo e, ao mesmo tempo, integrá-lo a si mesmo. Para Fischer, isto é claro na medida em que faz parte da natureza humana essa transcendência.

É a partir de afirmações como essa que rei­teramos nossa convicção de que a formação cultural dos professores é fundamental e ur­gente. Como formador de futuros cidadãos, o professor, antes de tudo, precisa estar co­nectado com o mundo da cultura, cultura essa entendida como patrimônio de todos. É inerente ao seu ofício fazer as mediações necessárias para que seu aluno possa tomar posse de todo esse patrimônio. Contudo, se ele mesmo não possui os instrumentos de análise necessários para esse fruir mais aprofundado, como estimular esse processo em seus alunos? Daí a necessidade de inves­timentos vigorosos nessa direção.

Uma conjugação de esforços se faz neces­sária: mudanças curri­culares nos cursos de formação de profes­nsores, estímulo à frequência de espaços cul­turais, descontos para professores nos ingres­sos, enfim, uma efetiva política de incentivo à formação cultural dos professores. Efetivamente, uma conjugação de esforços e medidas que se constituam em um projeto político e não apenas iniciativas isoladas, quase sempre marcadas por inte­resses localizados ou sem continuidade. É preciso ultrapassar a lógica de uma política de eventos para se viabilizar uma política de Estado, na direção de um conjunto de medi­das, a curto, médio e longo prazos, que ga­rantam a formação cultural dos professores em um nível aprofundado.

É no reconhecimento do potencial da Arte e da cultura em geral na transformação das pessoas que defendemos sua apropriação por todos os indivíduos, sem distinção de classe, gênero ou etnia. E é no reconhecimento da Educação como uma das alavancas primor­diais para a transformação social (FREIRE, 1993), que defendemos a formação cultural dos professores como elemento central no processo de emancipação da sociedade.



a cultura na formação de professores

Em educação, uma ideia questionável, mas amplamente generalizada, é a de que o su­cesso do processo de ensino e aprendizagem se vincula diretamente ao domínio de con­teúdos escolares pelo pro­fessor ou pela professora e à capacidade de transmi­ti-los. A fim de contribuir para esse debate, defendo aqui a necessidade de a formação docente incluir experiências estéticas que permitam a professores e professoras mediarem a aprendizagem de conteú­dos curriculares e amplia­rem o repertório cultural de alunos e alunas com mais facilidade e segu­rança. Também discuto a contribuição de experiên­cias estéticas para proces­sos de subjetivação constitutivos da profis­sionalidade docente. Para tanto, parto dos pressupostos de que fatores sociais e cultu­rais são decisivos à constituição de saberes docentes e sua mediação na aprendizagem discente e, ainda, de que estudos so­bre a relação entre docentes e cultura podem ampliar a compreensão das práticas educativas referentes não só à mediação do co­nhecimento esco­lar, mas também à formação humana em sentido lato, que supõe forma­ção cultural e esté­tica.

Toda prática social tem dimensão cultural, ou seja, a cultura aprendida e apreendida é referência para diversos procedimentos ou normas de pensar, agir e relacionar-se compartilhados e reconhecidos pelos sujeitos na vida pessoal e na vida profissional aprendida e apreendida é referência para di­versos procedimentos ou normas de pensar, agir e relacionar-se compartilhados e reco­nhecidos pelos sujeitos na vida pessoal e na vida profissional. Cultura e educação não se dissociam, pois os processos educativos, sejam institucionais ou não, inserem-se em uma cultura.

À luz de Bourdieu e Jean Claude Passeron (1975) — quando asseveram que as relações entre competências culturais e linguísticas próprias de certa classe social determinam o desempenho na escola —, também se pode supor que, quanto maior e mais variado for o repertório cultural do professorado, mais numerosas e apropriadas serão as escolhas possíveis para que este medeie a construção de conhecimentos escolares.

Ora, se a educação tem vínculos fortes com a cultura, então é pertinente discutir a con­tribuição das experiências culturais da vida cotidiana para a formação de docentes e sua prática educativa.

Para Maurice Tardif, o saber docente é plural e construído em diferentes tempos e espa­ços da vida em sociedade; é um saber resul­tante de um amálgama de vários saberes: os saberes da formação profissional, os saberes disciplinares, os saberes curriculares e os sa­beres experienciais. Aqui nos interessa dis­cutir os saberes experienciais, ou seja, aque­les saberes que mobilizam conhecimentos adquiridos através da história de vida, da experiência de trabalho e da socialização (TARDIF, 2002).

Se, como afirma Tardif, os saberes experien­ciais colaboram para a constituição do saber docente — e se resultam, em grande parte, das experiências da vida em sociedade —, então cabe perguntar: que experiências são essas? Incluem experiências culturais e es­téticas como práticas de leitura e hábito de frequentar museus, salas de concerto, tea­tro, cinema, exposições de artes visuais, es­petáculos de dança etc.? E quais são as con­tribuições que essas experiências trazem à prática pedagógica?

Ainda são escassos os estudos que desta­cam os vínculos entre cultura e educação e defendem a escola como centro de for­mação cultural onde as disciplinas das hu­manidades voltadas ao sentir e ao pensar (música, literatura, teatro, cinema, artes visuais e outras) são vistas como parte im­portante da educação escolar; também são escassos estudos que apontem a relevância das experiências estéticas para processos de subjetivação e para a constituição da profis­sionalidade docente. Mas tal escassez não se justifica por falta de reconhecimento da importância desses vínculos, apontados por vários autores que defendem uma política de formação (inicial e continuada) que asse­gure ao professor e à professora o acesso a formas variadas de expressão artística.

No Brasil, a posição oficial quanto a uma formação cultural para docentes é incipien­te e difusa. Com efeito, o Plano Nacional de Educação apenas sugere que os currículos dos cursos de formação para o magistério assegurem uma “ampla formação cultural”, e recomenda uma parceria entre as institui­ções formadoras e os equipamentos cultu­rais públicos e privados com o objetivo de “[...] criar oportunidades de convivência com um ambiente cultural enriquecedor [...]” (BRASIL, 2001, p. 74).

Também as Diretrizes Curriculares Nacio­nais para formação de professores/as da educação básica abordam vagamente o pro­blema da formação cultural. Tal documen­to diz que “[...] a organização curricular de cada instituição observará [...] outras formas de orientação inerentes à formação para a atividade docente, entre as quais o preparo para [...] o exercício de atividades de enrique­cimento cultural [...]”; e também recomenda “[...] iniciativas que garantam parcerias para a promoção de atividades culturais destina­das aos formadores e futuros professores” (BRASIL, 2002).

A ambiguidade e a superficialidade desses documentos no tocante à problemática da formação cultural do professorado são reiteradas pelos dados de uma pesquisa recente (GATTI; BARRETO, 2009) sobre as licenciaturas. A pesquisa indica a presença de disciplinas optativas nos currículos das licenciaturas que, pela sua denominação, podem ser relacionadas à educação es­tética; mas isso não significa que visem à formação cultural de professores e profes­soras — dito de outro modo, podem ser dis­ciplinas instrumentais, voltadas ao ensino de técnicas artísticas.

A mesma pesquisa indica que muitas licen­ciaturas incluem no currículo “atividades culturais”, “atividades científico-culturais” ou “seminário cultural”. Mas, no dizer das pesquisadoras, “[...] pelo material examina­do [...] fica muito pouco claro do que cons­tam e qual o tratamento que lhes é ofereci­do [...]” (GATTI; BARRETO, 2009, p. 124). O que nos leva à suposição de que foram inseridas no currículo para atender “no papel” às re­comendações dos documentos oficiais.

Outra pesquisa (UNESCO, 2004), de âmbito nacional, evidencia a necessidade de os ór­gãos governamentais se preocuparem mais com a formação cultural de docentes. Feita em 2002, ela enfocou o perfil de professores e professoras da educação básica no Brasil e, dentre outros quesitos, levantou informa­ções sobre o consumo cultural e as preferên­cias e atividades culturais. Os dados foram obtidos mediante questionário, respondido por uma amostra representativa — cinco mil pessoas — do universo constituído por do­centes de escolas públicas e privadas das 27 unidades federativas. Sobre a participação docente em eventos e atividades culturais (visitas a museus e exposições de artes visu­ais, frequência a teatro, concertos, cinema etc.), os dados são alarmantes: 62,1% nun­ca foram a um concerto de música erudita, 17,4% nunca foram ao teatro, 14,8% nunca foram a um museu, 8,6% nunca visitaram uma exposição em centros culturais e 8,6% nunca foram ao cinema.

Os baixos índices de consumo de bens cul­turais obtidos nessa pesquisa podem indicar que, em muitos municípios brasileiros, é pequena ou nula a oferta de equipamentos, ações e eventos culturais. No Brasil, a maio­ria das ações culturais não abrange muitos segmentos do mercado consumidor, pois estão nos grandes centros urbanos e são destinadas a um público mais exigente e di­ferenciado que vive nas capitais de mais pro­jeção (CAIADO, 2001). Ou seja, o investimen­to público em cultura subsidia o consumo das camadas de média e alta renda (SANTOS, 2009). Ao não contemplar pequenos municí­pios e a periferia das grandes cidades, tais ações não atingem as camadas de mais bai­xa renda, nas quais a maior parte do profes­sorado se inclui.

Mas outros fatores contribuem para o baixo índice de consumo cultural entre professo­res e professoras. Em pesquisa mais recente (ALMEIDA; CAMARGO; SILVA, 2007), que cor­robora os índices acerca do consumo cultu­ral obtidos na pesquisa UNESCO, as profes­soras entrevistadas afirmam que jornadas de trabalho intensas e salários baixos, bem como a falta de familiaridade com certos tipos de produção artística — suas histórias de vida familiar e escolar não registram tais experiências — limitam ou impedem certas práticas culturais. Essas justificativas con­firmam que a dificuldade de acesso a certas expressões da cultura se vincula ao nível de educação, à profissão, à localização domici­liar e, sobretudo, às transmissões familiares — como assinala Bourdieu (1998).

Os resultados das pesquisas aqui citadas permitem supor que as experiências cultu­rais da maior parte do professorado brasi­leiro não se distinguem das experiências do alunado, pois compartilham a mesma cultura amorfa disseminada pela indústria cultural via meios de comunicação massi­va. Assim, cabe indagar: como professores e professoras podem ampliar a bagagem cul­tural de alunos e alunas se os repertórios de experiências estéticas de ambos se asseme­lham?

O baixo índice de frequência a eventos cul­turais entre professores e professoras se tor­na ainda mais sério porque fatores sociais e culturais são centrais na constituição de saberes docentes e na mediação de conheci­mentos escolares. Ora, na prática educativa, não só se busca cumprir as prescrições da cultura escolar, mas também se expressa uma subjetividade pro­duzida pela cultura vi­vida em sociedade.

Se à escola cabe a responsabilidade de ampliar a dimensão expressiva e criativa de alunos e alunas, familiarizando-os com um mundo cultural alheio ao cotidiano de suas vidas, é premen­te a necessidade de se implementar uma política de formação profissional que preve­ja o desenvolvimento cultural e estético do professorado da educação básica.

Defender uma formação cultural que ultra­passe os limites do que a “cultura massiva” pode oferecer, de modo algum, supõe opô-la à chamada cultura erudita. Não se trata de preferir uma a outra, pois os universos distintos de significados culturais que tran­sitam na sociedade contemporânea não po­dem ser hierarquizados; antes, têm de ser previstos no processo criativo dos sujeitos e nas mediações possíveis entre o vivido, o aprendido e o imagi­nado. Nesse caminho, cabe ao professorado reconhecer as cultu­ras locais de que o alunado participa — às vezes de forma díspar — e levar à sala de aula outros universos de significados para que possam ser confronta­dos, apropriados e re­construídos.

O consumo de bens culturais é direito de todos, por isso é tarefa do Estado implemen­tar ações coordenadas e contínuas para ampliar as condições de acesso à cultura mediante serviços cultu­rais que garantam formas de inclusão e participação de todos; ou seja, uma políti­ca cultural que amplie as dimensões exis­tenciais para além do trabalho e da subsistência. Equivocadamente, as políticas públicas para se democratizar a cultura se fundamentam na ideia de que os entraves ao consumo de tais bens são materiais: má distribuição ou ausência de espaços cultu­rais, ingressos com preço muito alto etc. No entanto, na contramão do que revelam as pesquisas, as barreiras simbólicas pre­ponderam como forma de impedir alguns segmentos da população de consumirem certos bens culturais.

A sensibilidade, sobretudo em relação a ex­periências de apreciação artística da músi­ca, da dança, do teatro, das artes visuais e do cinema, também constitui os saberes do­centes. Se tais experiências são reiterativas da cultura amorfa disseminada pela mídia massiva, elas expressam uma formação ini­cial e continuada ineficiente, agravada pela inserção precária ou pela falta de inserção na vida cultural. Superar esse problema de­pende do Estado (definição de prioridades, controle e acompanhamento de ações pro­gramadas ou fomentadas pelo governo) e da sociedade civil (que tem papel decisivo na construção dos sistemas culturais). Ao pro­fessorado cabe se mobilizar não só em prol do controle de gastos públicos com cultu­ra, mas também de sua participação direta na definição de políticas culturais em geral e políticas para a formação de profissionais da educação em particular.

Ora, se as barreiras simbólicas preponderam como empecilhos para que certos segmen­tos da população — nesse caso, professores e professoras, alunos e alunas — consumam certos bens culturais, então é necessário que os currículos de formação docente deem mais atenção a práticas estéticas, culturais e de criação. Enfim, se a escola é instrumen­to poderoso para formar o gosto e estimular a apreciação e o uso de bens simbólicos de forma duradoura e estável, então, é urgen­te uma revisão curricular da formação ma­gisterial e políticas públicas para formação cultural e estética de docentes atuantes na educação básica do Brasil. Não uma “políti­ca de eventos”, mas uma política que crie um programa educativo a ser desenvolvido em longo prazo e abarque educação escolar, estudos superiores e formação continuada; um programa em que as instituições forma­doras sejam espaços não só de produção e difusão cultural, como também — e sobretu­do — de mediação cultural; um programa em que — dadas as condições atuais de trabalho e salário de professores e professoras — haja uma democracia cultural que lhes possibili­te consumir outros bens culturais além dos que são oferecidos pela indústria cultural.[1]




[1] Texto retirado do Site da TV Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário